Ciência brasileira desenvolve primeira cana editada não-transgênica do mundo

As canas Flex respondem a desafios do setor e facilitam a fabricação de etanol (de primeira e segunda geração) e a extração de outros bioprodutos. Na foto, a Flex II

  • Pesquisa brasileira desenvolveu a Cana Flex I e a Cana Flex II, variedades que apresentam, respectivamente, maior digestibilidade da parede celular e maior concentração de sacarose nos tecidos vegetais.
  • CTNBio considerou os novos materiais como DNA-Free, ou seja, não-transgênicos.
  • Novas variedades são resultado do silenciamento de dois genes com o uso da técnica de CRISPR.
  • Resultado do silenciamento dos genes gerou planta com maior digestibilidade da biomassa (Cana Flex I) e com maior concentração de açúcar nos tecidos vegetais (Cana Flex II).
  • A Cana Flex II apresentou incremento de até 15% de sacarose nos colmos, 200% a mais de sacarose nas folhas e 12% a mais de liberação de glicose na sacarificação. Além de gerar bagaço com maior digestibilidade para uso na alimentação animal.

Cientistas da Embrapa Agroenergia (DF) desenvolveram as primeiras canas editadas consideradas não-transgênicas do mundo (DNA-Free), de acordo com a Resolução Normativa nº 16 (RN nº 16) da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), proferida no dia 9/12/2021. São as variedades Cana Flex I e a Cana Flex II, que apresentam, respectivamente, maior digestibilidade da parede celular e maior concentração de sacarose nos tecidos vegetais. Elas respondem a um dos maiores desafios do setor: aumentar o acesso das enzimas aos açúcares presos nas células, o que facilita a fabricação de etanol (de primeira e segunda geração) e a extração de outros bioprodutos.

A Cana Flex I é fruto do silenciamento do gene responsável pela rigidez da parede celular da planta. Essa estrutura foi modificada e apresentou maior “digestibilidade”, ou seja, maior acesso ao ataque de enzimas durante a etapa da hidrólise enzimática, processo químico que extrai os compostos da biomassa vegetal.

Flex II: mais sacarose

Já a segunda variedade foi gerada por meio do silenciamento de um gene nos tecidos da planta, o que ocasionou um incremento considerável na produção de sacarose nos colmos da planta modelo, a Setaria viridis.

“Uma vez identificada essa característica de acúmulo de açúcar na planta-modelo, transferimos esse conhecimento para a cultura da cana-de-açúcar, alvo das nossas pesquisas. Novamente foi observado um incremento da ordem de 15% de sacarose no colmo da cana, bem como o aumento de outros açúcares como glicose e frutose, também presentes na planta, tanto no caldo quanto no tecido vegetal fresco”, explica o pesquisador da Embrapa Hugo Molinari.

A equipe também observou incrementos da ordem de 200% de açúcar nas folhas da cana. “Também fizemos ensaios para ver se o gene tinha atuação na melhoria da sacarificação, que é a conversão da celulose em açúcar industrial, e observamos um incremento da ordem de 12%”, complementa o pesquisador.

Como vantagens da Cana Flex II, Molinari cita o aumento da eficiência na produção de bioetanol, a descoberta de uma variedade mais adequada ao processamento industrial, a obtenção de um bagaço com maior digestibilidade para uso na alimentação animal e a agregação de valor à cadeia produtiva da cana-de-açúcar como um todo.

“Em 2020/2021, a produção estimada total de açúcar no mundo foi de 188 milhões de toneladas, sendo o Brasil responsável por 39 milhões de toneladas, o equivalente a 21% da produção mundial”, afirma Molinari.

Outro ponto destacado pelo pesquisador é a contribuição da cultura da cana para uma matriz energética mais limpa. “Hoje sabemos que mais de 45% da matriz energética brasileira é renovável e que a cana-de-açúcar contribui com uma fatia de mais de 30% para essas fontes renováveis,” informa.

Foto: Hugo Molinari (Flex I)

Embrapa Agroenergia busca parceiros

Para que as Canas Flex I e Flex II estejam nos canaviais brasileiros, a Embrapa Agroenergia está buscando parceiros com interesse em dar continuidade às avaliações e ao seu licenciamento para levar os materiais ao mercado. As pesquisas com cana-de-açúcar já contam com uma parceria de sucesso com a startup Pangeia Biotech, com a qual foram desenvolvidas variedades resistentes à broca-da-cana e ao herbicida glifosato. Para saber mais como se tornar um parceiro da Embrapa Agroenergia, clique aqui.

Pesquisa utilizou técnica revolucionária de edição de genomas

A Embrapa Agroenergia já vinha estudando genes relacionados às acil transferases, enzimas responsáveis pela formação e modificação na estrutura da parede celular da planta e que permitem o acesso ao açúcar. “Especificamente no caso da Cana Flex II, o nosso grupo identificou um gene candidato pertencente à família das acil transferases que se mostrou um ativo biotecnológico muito promissor e viável para aumentar a produção de açúcares em gramíneas”, explica o pesquisador.

Ambas as pesquisas utilizaram a técnica da edição genômica CRISPR (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), técnica revolucionária de manipulação de genes descoberta em 2012. A tecnologia utiliza a enzima Cas9 para cortar o DNA em pontos determinados, modificando regiões específicas. A descoberta rendeu o Prêmio Nobel de Química em 2020 às pesquisadoras que publicaram o primeiro artigo sobre o tema: Emmanuelle Charpentier e Jennifer A. Doudna.

Na construção das Canas Flex I e II, não houve, portanto, modificação do DNA da planta, apenas o silenciamento dos genes. Por esse motivo, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) classificou as novas variedades como não-transgênicas.

“A polêmica gerada acerca do uso de plantas transgênicas na agricultura fez com que cada país no mundo criasse uma regulamentação específica sobre o tema, o que elevou o custo para inserir no mercado as variedades geneticamente modificadas (GM). Hoje, vemos uma nova tecnologia surgir, a edição de genomas, com a qual não é necessária a introdução de sequências exógenas de outras espécies no genoma da espécie-alvo”, conta Molinari.

De acordo com o cientista, apesar de a transgenia continuar sendo uma estratégia importante para a solução de inúmeros problemas na agricultura e agregação de valor a espécies, a edição genômica feita com técnicas como o CRISPR permite a manipulação do DNA de forma mais precisa, rápida e econômica quando comparada à transgenia.

“A tecnologia CRISPR tem permitido uma democratização do uso da biotecnologia na agricultura, não somente do ponto de vista de mais empresas e instituições participarem do desenvolvimento de produtos que chegam ao mercado, mas também permitindo que mais espécies de interesse sejam beneficiadas”, explica Molinari. Segundo ele, o custo estimado para o desenvolvimento de uma planta transgênica é de cerca de US$ 136 milhões e entre 30% e 60% desse valor é destinado às etapas de  desregulamentação.

Molinari lembra que o desenvolvimento tecnológico da cultura da cana-de-açúcar ao longo do tempo foi o grande responsável pela expansão do setor. Por décadas, diversos grupos de pesquisa no mundo dedicaram esforços em pesquisa básica para ter uma melhor compreensão acerca do metabolismo do açúcar vegetal e seu controle durante o desenvolvimento em espécies modelo. “Hoje, o metabolismo do açúcar é bem conhecido, revelando a integração de várias enzimas e vias metabólicas nos processos de transporte e acúmulo”, complementa o pesquisador.

De acordo com o chefe-adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Agroenergia, Bruno Laviola, o desenvolvimento de novas cultivares de cana pela técnica CRISPR é uma ação na fronteira do conhecimento. “Essas cultivares são somente o começo e abrem caminho para o desenvolvimento e entrega de outras cultivares para o setor produtivo com características que irão impactar diretamente na produtividade da cana e na diminuição do custo de produção,” anuncia.

Flex II: retorno mínimo de 10% ao ano do investimento

Com o auxílio da economista Rosana Guiducci, pesquisadora da Embrapa Agroenergia, a variedade Cana Flex II ganhou uma análise sobre cenários de adoção e avaliação de impactos econômicos no setor sucroenergético. A análise foi tema do trabalho final de MBA realizado por Molinari, no qual a economista foi co-orientadora.

O trabalho realizado no MBA buscou avaliar a viabilidade econômica dessa nova variedade voltada para o aumento no teor de açúcares e melhor aproveitamento do bagaço e da palhada para a produção de etanol de segunda geração (E2G).

Para estimar ganhos econômicos com a adoção da tecnologia, o estudo avaliou dois cenários possíveis, um otimista e um conservador. O primeiro seria a expansão gradual da adoção da Cana Flex II em 1% ao ano, atingindo 10% da produção observada na safra 2020/2021 de cana-de-açúcar no Brasil ao fim de dez anos.

No segundo cenário, mais conservador, a taxa de expansão seria de 0,5% ao ano, chegando a 5% da produção de cana observada na safra 2020/2021 ao fim de dez anos. “Em ambos os cenários, consideramos que uma usina padrão iria processar essa produção, destinando 50% da cana para a produção de açúcar e 50% para etanol de primeira geração, e 60% da palha e do bagaço para a produção de etanol E2G na usina”, explica a Guiducci.

A análise de viabilidade econômica considerou no fluxo de receita os diferenciais esperados com a Cana Flex II, obtidos na produção de açúcar, etanol 1G e E2G, comparativamente a uma cana convencional.

Considerou-se um investimento para expandir a infraestrutura e capacidade de processamento da usina da ordem de R$ 2 bilhões (cenário otimista) e em dois aportes de R$ 1 bilhão (cenário conservador), ambos com despesas anuais de manutenção da ordem de R$100 milhões.

A análise final indicou que o investimento é viável, uma vez que os ganhos adicionais esperados com a Cana Flex II registraram uma taxa interna de retorno (TIR) de 27% e 16% e um valor presente líquido (VPL) de R$ 4,19 milhões e R$ 982,7 mil nos cenários otimistas e conservador, respectivamente.

Foto: Hugo Molinari (Flex II)

 

Cenário mundial prevê crescimento na produção e exportação do açúcar brasileiro 

Analisando o cenário mundial da cultura da cana, existe uma previsão de crescimento estimado da produção mundial de açúcar de 13% em relação à safra 2019/2020. No Brasil, o aumento esperado é de 32%. Os principais destinos do produto bruto são os mercados asiáticos, além de nações que possuem polos de refino, como a Arábia Saudita e a Argélia. No Brasil, as exportações de açúcar somaram 28,85 milhões de toneladas em 2020, 45% a mais que o ano anterior, quando foram exportados 18,9 milhões de toneladas.

“O aumento das exportações brasileiras é estimulado, sobretudo, pela redução na oferta mundial devido a adversidades climáticas, como geadas, em importantes países produtores da Ásia e pela desvalorização cambial”, explica a economista Rosana Guiducci.

Fonte: Irene Santana/Embrapa Agroenergia





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